Réquiem Blank Blue

Adilson Vilaça


I
É incomum que anjos,
criaturas frágeis e etéreas,
pousem entre humanos.
Muito menos anjos barrocos.
Menos ainda anjos barrocos portadores
de uma lira de linhagem pós-moderna.
A poesia de Sérgio Blank prescinde de rímel,
seu texto não traja máscara ou maquiagem.
Sua poesia tem o aroma de amora madura,
mas recende a amaro o sabor de sua doçura.
Seus poemas são trampolins, êxtase e sobressalto,
são revoos de borboletas desnudadas de asas.
Seus versos são beija-flores a atear fogo nos oceanos,
cardume de trombetas a desusarem-se no silêncio.
Senão vejamos: os acordes dissonoros de Blue sutil,
o derradeiro legado de sua prosa poética,
marca andamento e compasso de equilíbrio ímpar.
Quem já bamboleou passos, suspenso no ar,
no balanço de arame farpado assim peculiar?
Sem fazer alarde, a voz conchegada
num fiapo de sussurro, acalanto em fragmentos
de récita sua prosa encantada:
“Não sei rezar.
Acredito que molhar os pés
nas ondas do mar é uma oração”.
Os poemas desse incrível manual da sensibilidade
são despidos de moldura, não têm título;
se ele me pedisse para batizar o poema citado,
eu lhe ofertaria Oração. Mas Sérgio nunca foi de pedir
nada, nada, nada com o idioma da voz.
Quando acuado, refugiava-se na transparência
de um riso tímido, generoso escudo do passo
espichado, evadia-se esvoaçado em não-seis,
sombra esguia de cabelos louros e olhos tão azuis,
mas tão azuis, quanto o céu das tardes de maio.

II
Ecoporanga não é Pasárgada,
porém lá é a minha Pasárgada,
porque é a cidade do meu coração.
Você não tem Cariacica, Sérgio? Pois é, meu caro,
Ecoporanga é o meu lugar, a minha Aldeia.
Disse isso ao Sérgio, viajamos em comboio.
Amizades de infância espantaram-se,
riram-se de seu jeito varapau. Era maio,
tempo do veranico e das noites amenas.
Seu sobretudo esvoaçante congregou-se
aos boêmios, sua metamorfose em espectro
causou especulações, vaqueiros apaixonaram-se,
esporas grudaram-se a seus passos.
Quatro décadas se passaram.
Três vezes apeamos em Ecoporanga,
por três vezes, por estafa, ressaca ou sabedoria
Sérgio refugou a escalada ao Pico do Inhambu.
Pés no chão, nada de enfiar a cabeça entre nuvens,
o ofício nefelibata, por mérito, era já seu testamento.
A pedra continua lá, no meu descaminho,
drummondiana e inabalável e descomunal
em seus quinhentos metros de ternura.
Em 2019, novo comboio, viagem rodeada de amigos,
entrementes, nas vésperas, seu fígado encrenqueiro
manifestou-se contra, acorrentou-o como se Sérgio
fosse Prometeu – e Prometeu ele não era.
Uma invisível águia comia-lhe o fígado,
diuturnamente, feito um carrasco sem propósito,
sádico, sentinela a afugentar as promessas
da esperançosa fila do transplante.
Agonia.
Castigo.
Tortura.
Inação.
Prostração.
Fígado.
Maldito! Maldito! Maldito!
O poeta dava um jeito na dor,
tão calma e tão nenhuma porque sorrateira,
e o poeta sobrevivia – e sua panaceia,
sorvida em overdose, era a poesia.

III
Com lugar afiançado na Caravana de 2020,
o poeta dormia sossegado, na tocaia prolongada
de súbita pandemia. Seria em outubro.
Viajaremos?, ele indagava. Sim.
Sim sem talvez?, emendava. Talvez sim.
O poeta estava apreensivo, lacônico,
sem pernas para dançar um tango argentino,
percebia-se no balbucio de quase menino
o unto das palavras desidratado do corpo franzino.
No exato dia em que completou um ano
da posse acadêmica, no justo exato dia,
a mais exata e absoluta injustiça
a bala perdida da vilania da tirana polícia
espalhou aos ventos a mordaz notícia.
No dia 21 de julho ele tomou sua lira,
incendiou os versos depositados no olhar,
despediu-se sem dizer nada, nada, nada, nada
porque tudo já estava dito.
Fígado maldito!

IV 
Ao arrumar as malas para a próxima viagem,
quando revisitar Ecoporanga, a minha Pasárgada,
levarei Sérgio comigo, ele e sua leve bagagem.
Escolherei de Blue sutil, e o ensaio é agora,
dez versos para enterrá-los na carne de pedra
do Pico do Inhambu. Dez versos para suavizar
a tez monumental do granito. Como se fosse oração,
para sempre guardada lá onde mora o meu coração.

“O silêncio desenhado no horizonte é uma prece”.
“O azul se espalha na tarde como uma celebração pagã”.
“O outono é uma estação que mora nos livros de poemas”.
“Vou evitar colecionar nuvens em formato de elefante”.
“O passeio de bicicleta na lua desenhou um poema no céu”.
“A delicadeza não possui tamanho ou espessura”.
“Sou fiel e mantenho a solidão como amuleto”.
“O mundo é redondo e a vida é torta”.
“Aceitam-se encomendas para cerzir cicatrizes”.
“A casa do silêncio é o oco do homem”.

Lá do Pico do Inhambu, horizonte sem fim,
réquiem sem arremate, uivo de ouvidos blues,  
esparzirei esses versos, flores de dentes-de-leão,
aos quatro ventos: afeto, amizade, ausência, adeus.
Um gesto de amor sempre secreta alguma dor.
Por que não percebemos o fio prestes a se romper?
Ao vírus da displicência não se mata com penitência.
Esta é a contrição que faço, sem mea-culpa,
mas com algum embaraço. Que esta oferta,
pão e ossos e pétalas, estes sagrados versos do Sérgio,
algumas de suas tão inestimáveis pedras de toque,
a requintada essência de sua prosa poética, 
acordes do blue dissonoro dedicado à sua lembrança,
sejam abocanhados em comunhão.

V
Dizer adeus a este admirável capixaba,
para sempre vivo, não é missão impune.
Dizer adeus a um amigo tem seu preço,
em lágrimas, e aperto no coração.
Que assim seja: contenho-me no pouco que sou,
e sei tampouco que não posso restituir-lhe a vida.
Muito comovido... Requiescat In Pacem, meu amigo.
Guardarei comigo, quase posso tocá-la,
a transparência de seu sorriso.
Sérgio não era Blank, era Blue. Sutil.

Adilson Vilaça de Freitas é mineiro, mas reside no Espírito Santo desde 1977. É autor de 46 livros dos mais diversos gêneros. Ocupante da cadeira 13 da Academia Espírito-santense de Letras, da qual é vice-presidente.

Torta Capixaba III

Voltar